sábado, 30 de agosto de 2008

A realidade, em pleno século 21, dos trabalhadores brasileiros nos ricos canaviais do país (parte 6)

Este post foi dividido em seis partes porque a matéria aqui apresentada é extensa e densa. Esta série de reportagens, realizada pela Folha de São Paulo (apenas para assinantes), pretende mostrar a cruel realidade do dia-a-dia dos cortadores de cana-de-açúcar no país. É um verdadeiro 'soco no estômago' no comodismo da tal Justiça Social.
"A democratização das nossas sociedades se constrói a partir da democratização das informações, do conhecimento, das mídias, da formulação e debate dos caminhos e dos processos de mudança." (Betinho)
 
Parte 6: "Manual antiquado" e "Vestígios arcaicos"
 

O submundo da cana

Estado que detém 60% da produção nacional de cana-de-açúcar, São Paulo não divide a riqueza derivada do boom de etanol com seus 135 mil cortadores, que vivem muitas vezes em situações precárias
 
MÁRIO MAGALHÃES
JOEL SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS AO INTERIOR DE SP
 

Manual antiquado

Máquinas já colhem 50% da safra em SP; a cada 1% de área mecanizada, 2.700 pessoas perdem emprego
 
Moradores de cidades litorâneas praguejam contra o estrago que a maresia faz nos eletrodomésticos. Mas não têm idéia do inferno que é, para a limpeza de casa, a sujeira nos municípios onde se cultiva cana.
Limpa-se de manhã, e, à noite, a fuligem das queimadas encobre tudo de novo. A imundície vai acabar, bem como o fogo e os cogumelos de fumaça que lançam gás carbônico e outros poluentes que conspiram para o aquecimento global.
Protocolo ambiental do governo do Estado com as usinas prevê para 2014 o fim das queimadas em áreas passíveis de colheita mecanizada de cana e, para 2017, nas não mecanizáveis (acima de 12 graus de declive). Conforme a Unica, estas representam em torno de 7%.
Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da entidade, afirma que o prazo será antecipado: "2014 será quase o fim". A produtividade dos cortadores é maior em lavouras submetidas antes à queima. O fogo preserva as varas, e o corte manual fica mais simples.
E menos perigoso - as queimadas eliminam animais peçonhentos. Na cana crua, a colheitadeira é ainda mais rentável que o homem.
A safra deste ano (denominada 2008/2009), de abril a novembro, é a primeira em que pelo menos metade da cana será colhida mecanicamente, anuncia a Unica. O custo da operação da colheita mecanizada é 20% menor.
As máquina substitui cerca de 80 homens. O conjunto de equipamentos que inclui a colheitadeira sai em média por R$ 1,2 milhão, calcula a Unica. Há 1.650 em ação em SP.
Em 2006, o Estado produziu 299 milhões de toneladas de cana e empregou 189,6 mil pessoas no corte manual. No total, contando a colheita mecânica e a indústria de etanol e açúcar, havia 260,4 mil empregados.
Em 2015, dizem os usineiros, será zero o emprego em colheita manual. Na cadeia produtiva, haverá 127,8 mil funcionários, mesmo colhendo 457 milhões de toneladas.
Os cortadores são 135 mil em São Paulo em 2008, estimam os empresários. No Brasil, ao todo seriam 335 mil. A Unica adota estatísticas de um estudo que, baseado no IBGE, quantificou em 566 mil os trabalhadores no cultivo da cana no país em 2006. No Nordeste, os cortadores serão mantidos por mais tempo que em SP.
No centro-sul, que concentra o setor sucroalcooleiro e inclui o Sudeste, a colheita na safra é 11,57% maior que em 2007 no mesmo período. A produção de açúcar caiu 2,51%, mas a de álcool se expandiu 15,61%.
Destina-se ao etanol 60% da cana. O Instituto de Economia Agrícola, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de SP, avalia que, a cada 1% de área mecanizada, desempregam-se 2.700 pessoas.
 

Vestígios arcaicos

Cor da pele, vocabulário e analfabetismo remetem cortadores de cana de São Paulo aos tempos do escravismo
 
O cenário verdejante que pigmenta as fotografias e colore o horizonte não passa de ilusão - o tom do canavial é outro. A fuligem das queimadas ensombrece as varas de cana-de-açúcar e torna rubro-negra a terra roxa em que outrora se fincavam cafezais. Fragmentos da palha incinerada se amalgamam com o suor dos rostos e desenham máscaras escuras. A cor predominante dos canavieiros, de banho tomado, não muda.
São negros - a soma de "pretos" e "pardos" - 63,7% dos trabalhadores no cultivo da cana no país. A proporção supera os 43,4% de negros na PEA (população economicamente ativa) e os 55% na PEA rural.
A característica se repete em São Paulo, onde a presença negra na labuta da cana beira os 49%, o equivalente a 76% mais que na PEA geral do Estado e 54% mais que na sua fração do campo - conforme o Censo de 2000, em dados colecionados pelo economista Marcelo Paixão (UFRJ).
Os números frios ganham vida nas plantações. De perto, o canavial é mesmo negro.
Como eram os escravos que no Brasil moviam as moendas de cana, como documentou aquarela de Jean-Baptiste Debret em 1822. Ou, em gravura de William Clark de meses depois, os cativos que decepavam com facão a cana em Antígua.
Traços raciais e instrumentos de ofício se mantêm, mas o anacronismo vai além da semelhança de personagens dos retratos atuais com os das pinceladas do século retrasado.
É como se estatuto e cultura escravistas teimassem em permanecer, assim como um pé de cana se agarra ao solo e por vezes rende dez safras.
"Já conversei com o meu feitor", diz um canavieiro, sobre a autorização para que ele fosse fotografado para a reportagem (pedido negado). "O meu feitor é bom comigo", concede outro.
Inexiste conteúdo pejorativo, na boca dos cortadores, ao pronunciar a palavra. No Houaiss, uma acepção de feitor: "Diacronismo: antigo. Diz-se de encarregado dos trabalhadores escravos".
É arcaico - ou velhaco -, porém os chefes de turma assim são chamados na roça. Imprimiu-se a expressão "feitor" em ação civil pública e em decisão judicial recentes.
Em meio ao canavial, o cortador cuida do seu "eito". "Não paro até acabar o meu eito", conta um. O dicionário define eito como "plantação em que os escravos trabalhavam".
 
Analfabetismo
Assim como na escravidão africanos e descendentes cantavam, a cantoria hoje desafia o silêncio nas fazendas. Não são tristes os canaviais.
Em Serra Azul, um peão embala os golpes de podão com refrão da dupla sertaneja Gino e Geno: "Não é bebendo que você vai esquecer de mim; não é fugindo que o nosso amor vai chegar ao fim".
Cortadores de cana apegam-se ao copo, reconhecem muitos deles. A convivência longe da roça confirma.
A caninha não era tabu pré-Abolição. Na década de 1820, Carlos Augusto Taunay recomendava aos senhores, no "Manual do Agricultor Brasileiro", distribuir cachaça aos escravos após o jantar (reedição da Companhia das Letras, 2001, organização do historiador da USP Rafael de Bivar Marquese).
Naquele tempo, confinava-se a escravaria no analfabetismo. Na Revolta dos Malês, levante negro na Bahia de 1835, os líderes se distinguiram pelo domínio, raro, da leitura e da escrita.
Colhe-se o semeado. Com base em estatísticas de 2006, os pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. de Oliveira (USP) constataram que a escolaridade média dos trabalhadores da cana é de 3,7 anos. Na classificação de educadores, isso os reduz à condição de analfabetos funcionais.
No país, a média de estudo é de 6,9 anos. Na indústria do álcool, de 8,6.
Acumulam-se contratos em que a impressão digital do funcionário substitui a assinatura. "Não vou mentir, nunca fui à escola", conforma-se uma lavradora. Ela não pode ler os relatórios do Ministério do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho que descrevem cortadores de cana "resgatados" e "libertados".
Em maio, a Justiça Federal do Maranhão condenou um fazendeiro por reduzir seres humanos a condição análoga à de escravo. Ele foi acusado de torturar um funcionário com ferro de marcar gado.
Também por trabalho escravo, em 2005 a Justiça Federal de Piracicaba sentenciou à prisão um aliciador de paraibanos para o corte da cana em Nova Odessa (SP).
Cabem recursos.
 
Escravidão
Como interpretou Gilberto Freyre em "Casa Grande & Senzala", a cana "trouxe em conseqüência uma sociedade e um gênero de vida de tendências mais ou menos aristocráticas e escravocratas".
No canavial, o "mais ou menos" deu lugar ao paroxismo.
No livro clássico de 1933, o sociólogo pernambucano anotou que, nos idos de 1850, anúncios apregoavam preferência por negros com todos os dentes da frente. Nas plantações contemporâneas, multiplicam-se banguelas.
No finzinho do século 17, o jesuíta Jorge Benci pregava que os escravos não dessem duro aos domingos, como cita Bivar Marquese no livro "Feitores do Corpo, Missionários da Mente" (Companhia das Letras, 2004).
Hoje o Ministério Público do Trabalho combate o regime de cinco dias por um, adotado em muitos canaviais, no qual poucas folgas caem nos domingos e feriados.
A escala impede os oriundos de Minas Gerais e do Nordeste de celebrar datas que lhe são caras em virtude da religião.
No passado, batia o aperto, corria-se ao matinho. Segue assim: muitas empresas não instalam banheiros móveis obrigatórios ou, por inibição, os lavradores os evitam.
Se antes os filhos da casa grande se iniciavam nos dengos da cama com as moradoras mais formosas da senzala, agora se protocolam denúncias de assédio sexual de feitores contra as cortadoras.
Nas famílias canavieiras, mulheres vivem de outra profissão herdeira do Brasil colonial: são empregadas domésticas. Nessa atividade, elas têm mais tempo pela frente.
A socióloga Maria Aparecida Moraes Silva (Unesp) estima que a vida útil dos cortadores seja de 15 a 20 anos. É menos que a dos escravos nas décadas derradeiras do cativeiro no país. É como se os lavradores "estivessem em uma galé", escreveram os professores Francisco Alves (UFSCar) e Marcelo Paixão.
Em 13 de maio de 1888, a princesa imperial firmou a lei nº 3.353, com dois artigos: "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário".
No interior paulista, evoca-se a história. Em Dois Córregos, um migrante pernambucano sobrevive em uma espécie de cortiço na rua 13 de Maio. Em Guariba, uma habitação degradada de cortadores maranhenses fica na avenida Princesa Isabel.
Em Piracicaba, uma blitz oficial parte de outra rua 13 de Maio. Vai para a roça, onde aves de rapina perseguem os roedores que as queimadas expulsaram das tocas.
Sem dar pelota ao duelo entre ratos e urubus, homens e mulheres cortam cana.
 

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Max Coutinho

Oi Juca,

Estou abismada! Não fazia a mínima ideia de que isto ainda ocorresse no Brasil - é mais uma forma de escravatura moderna...que tristeza!

E como sempre o negro está no meio destas estatísticas horríveis...o que fazer?

Juca, este artigo reúne todos os ingredientes necessários para uma pessoa se revoltar: ainda no outro dia dizia a um amigo meu que a maneira de fazer negócios está muito desumanizada! Desde que se "inventou" o conceito de Shareholders e bolsa de valores, começou-se a desrespeitar o empregado (ou seja, voltámos ao desrespeito, na época da revolução industrial, que deu origem ao socialismo). Os empregados, as pessoas que trabalham para uma empresa são o capital principal dessa mesma empresa; se os maltratarem os coitados por mais boa vontade que tenham, nunca poderão produzir o que poderiam produzir (depois, os bosses culpam-nos da falta de produção, aderem aos sistemas mecanizados -para minimizar custos - e pumba...milhares no desemprego! De quem é a culpa? Dos irresponsáveis que se sentam nos escritórios a contar o dinheiro que entra - aonde está a responsabilidade social? É...é um bonito termo da gestão, mas poucos a põem em prática...

Ai Juca, teria tanta coisa para dizer aqui; mas não quero monopolizar a secção dos comentários!

Muito bom post! Seguirei os outros...

Tem uma boa semana, lindo!

Beijos

Juca

Max, pode monopolizar à vontade. (risos) É para isso mesmo que existe a seção de comentários. :-)

Vejo que você entendeu o âmago da questão, pois esta reportagem é de chocar mesmo. E pensar que este atual Governo fica propalando aos quatro ventos seu mirrado programa social, como se situações como essa não existissem mais.

Muito bonita a propaganda lá fora do futuro do etanol brasileiro, mas aqui a situação é essa aí.

Max, obrigado por abrilhantar o post com seu comentário!

Beijos! Boa semana!

Unknown

Caramba Juca, arrasou!

Nem li direito.
Li só parte da última 6ªparte. Mas já adorei!
VOu ler depois tudinho com calma, deixa comigo! ;]

Juca

Nana, sem ler tudo você já sentiu o 'peso' da injustiça cometida, imagine quando ler por completo!

Pode ler com calma, é muita coisa mesmo. Mas precisava colocar aqui na Lavanderia!

Beijão! :-)

Dulce Miller

De todos os textos dessa série, confesso que achei esse o mais "leve", se é que se pode chamar assim...Eu já tinha ouvido falar na exploração dos trabalhadores da cana, mas nunca imaginei que a situação fosse tão precária e vergonhosa a este ponto. =/
É contraditório falar que vivemos num mundo industrializado e ainda existir esse tipo de escravidão...

Sim, este é o nosso Brasil mostrando a sua verdadeira face.

Obrigada por compartilhar, Juca!

Anônimo

Ah, meu Deus!
AInda tem o desemprego... Mas o certo é tirar mesmo essas pessoas dessa situação humilhante e Remanejar para outros empregos. Sem que isso cause o desemprego e ainda mais miséria.

"Em 13 de maio de 1888, a princesa imperial firmou a lei nº 3.353, com dois artigos: "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário".
No interior paulista, evoca-se a história. Em Dois Córregos, um migrante pernambucano sobrevive em uma espécie de cortiço na rua 13 de Maio. Em Guariba, uma habitação degradada de cortadores maranhenses fica na avenida Princesa Isabel.
Em Piracicaba, uma blitz oficial parte de outra rua 13 de Maio. Vai para a roça, onde aves de rapina perseguem os roedores que as queimadas expulsaram das tocas.
Sem dar pelota ao duelo entre ratos e urubus, homens e mulheres cortam cana


É Juca. A gente lê e não sabe o que pensar.
Eu confesso que fiquei sem saber o que comentar.
Te parabenizo pela idéia de divulgar essa matéria que nem todos têm acesso. Quem sabe, um lendo aqui, outro lendo acolá... É assim que as mudanças começam: Com a divulgação, com o alarme.

Beijos meu querido!

Anônimo

Vejo isso de perto Juca! Da dó da exploração. Boa semana! Beijus

Anônimo

Pois é a história ainda está viva...

Éverton Vidal

Mano você não se importa se eu copiar não é?
Gostaria de levar para ler. Gostei demais! E achei importantíssimo. Ademais, tem muito a ver com algumas situaçöes pelas quais passa a Bolívia.

Forte abraço.

Juca

Obrigado, Luma! Boa semana!

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r4f4, infelizmente, uma parte podre da nossa história ainda vive...

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Vidal, copie à vontade! O conhecimento deve ser dividido e não aprisionado. Bem que você podia falar algo no seu blog sobre como isso ocorre na Bolívia, pois fiquei curioso! :-)

Abraços!

Max Coutinho

Meu Deus...

Oi Juca,

Lá consegui chegar ao fim da série, não é :)? Mas embora esteja feliz por ter lido todos os artigos desta investigação jornalistica, estou triste pela informação que a parte 6 contém (bem, as outras também era horríveis, é verdade): a prova de que a escravatura perdura! E ainda há gente que diz que a escravatura acabou...vivem em que mundo?

Olha, tudo o que posso fazer agora é divulgar este acontecimento, e agradecer-te por partilhares esta informação connosco...aprendi muito :D!

Beijos

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