quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A realidade, em pleno século 21, dos trabalhadores brasileiros nos ricos canaviais do país (parte 3)

Este post foi dividido em seis partes porque a matéria aqui apresentada é extensa e densa. Esta série de reportagens, realizada pela Folha de São Paulo (apenas para assinantes), pretende mostrar a cruel realidade do dia-a-dia dos cortadores de cana-de-açúcar no país. É um verdadeiro 'soco no estômago' no comodismo da tal Justiça Social.
"A democratização das nossas sociedades se constrói a partir da democratização das informações, do conhecimento, das mídias, da formulação e debate dos caminhos e dos processos de mudança." (Betinho)
 
Parte 3: "Crack, cachaça e maconha mascaram esforço e dor" e "Salário no olhômetro"
 

O submundo da cana

Estado que detém 60% da produção nacional de cana-de-açúcar, São Paulo não divide a riqueza derivada do boom de etanol com seus 135 mil cortadores, que vivem muitas vezes em situações precárias
 
MÁRIO MAGALHÃES
JOEL SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS AO INTERIOR DE SP
 

Crack, cachaça e maconha mascaram esforço e dor

O primeiro fumava maconha na colheita da cana porque "ficava com o corpo mais leve. Dava vontade de trabalhar".
O segundo escondia cachaça em sua mochila. "Quanto mais eu bebia, mais tinha energia. Eu me sentia forte."
O terceiro "ia embora" com maconha ou crack, subproduto barato da cocaína ainda mais destrutivo e capaz de criar dependência. "Quando usava, ninguém me segurava. Cortei 21 toneladas em um dia."
Na Casa do Caminho, um centro de recuperação de dependentes químicos em Barrinha, na maioria trabalhadores do cultivo da cana, eles tentam voltar à tona.
O primeiro trocou a maconha pelo crack. "Na roça, vinha a sensação de ser perseguido, eu ficava com medo, via revólver, dava vontade de atirar em mim mesmo. Não trabalhava. Comecei a perder o serviço."
O segundo foi do fermentado de cana-de-açúcar para o crack. Se fumava a droga, misturada com fumo, faltava ao trabalho. "No crack, o fim é o cemitério, uma cadeira de rodas ou a cadeia."
O terceiro "ficava louco e continuava trabalhando. Viajava no serviço. Gritava e zoava a cabeça dos meninos. Cantava reggae". Seu plano para quando sair: cortar cana.
Não se conhecem estatísticas de consumo de drogas ilícitas nos canaviais ou o índice específico de internação de cortadores. O fato novo é a disseminação no interior de São Paulo de clínicas de recuperação de trabalhadores da cana. Contam-se ao menos dez.
Os depoimentos dos lavradores associam o consumo de drogas à impressão inicial de superação dos limites físicos. Na largada, elas parecem ajudar. Depois, debilitam.
A Casa do Caminho abriga 40 internos. Seu presidente, Arnaldo Garcia, afirma que as fontes de financiamento são diversas. As usinas contribuem com açúcar e lenha.
 

Salário no olhômetro

Cálculos complexos e fraudes no peso lesam trabalhadores analfabetos ou semi-alfabetizados
 
O trabalho na colheita da cana-de-açúcar vale quanto pesa a cana cortada. Pelo menos deveria valer.
Documentos obtidos em duas regiões de São Paulo indicam que uma desconfiança atávica dos trabalhadores não se trata de paranóia: fraudes - ou erros - provocam o pagamento abaixo do previsto nos acordos com as empresas.
A remuneração dos cortadores é uma equação complicada mesmo para quem tem formação superior. Para a esmagadora maioria dos lavradores, é ainda pior: na média, eles não completaram nem a quarta série do ensino fundamental.
Anualmente, empresários e sindicatos de assalariados definem quanto vale a tonelada colhida. As cifras variam de acordo com o tipo da cana.
Embora o pagamento seja por peso, o desempenho dos cortadores é aferido por distância. Usinas e fornecedores de cana fixam o peso existente por metro colhido. O peso depende de altura, espessura e outras características da cana.
Multiplicam-se os metros colhidos pelo peso de 1 metro. O resultado é o peso da cana cortada. Este é multiplicado pelo valor da tonelada, determinando o ganho do dia.
Às vezes as contas não fecham. O trabalhador rural Adelfo da Costa Machado cortou 132 metros lineares de cana na quinta-feira 12 de junho.
A Indústria e Comércio Iracema Ltda., proprietária da destilaria Iracema, de Itaí (SP), pagou-lhe R$ 0,20 por metro. A jornada deu direito a R$ 26,40.
Daquele tipo de cana, uma tonelada valia R$ 2,7462.
Os demonstrativos da balança da Iracema revelam que na roça onde Machado trabalhou o rendimento por hectare foi de 138 toneladas. O desembolso pela mão-de-obra seria de R$ 379 por hectare (área pouco menor que o campo de futebol de dimensões máximas).
Com o espaçamento de 1,4 metro entre as fileiras de cana (ruas, como se diz na lavoura paulista), em um hectare há 7.140 metros lineares plantados. O lavrador tem de cortar um metro de cinco ruas - 5 metros, portanto - para que se compute um metro na sua produção.
Cada cortador deveria receber R$ 0,2653 por metro -33% a mais do que foi pago. Em vez de R$ 26,40, Adelfo Machado tinha direito a R$ 35,02 pelas 12,8 toneladas que abateu.
Deu para entender? Imagine os cortadores.
Para fazer o cálculo, precisou-se cotejar a "planilha de ponto de produção", preenchida no canavial por um fiscal da empresa, com o contracheque do empregado e um documento da firma assinalando as toneladas por hectare.
Foi o procurador do Trabalho José Fernando Maturana, de Bauru, quem garimpou e cruzou as informações.
Em um documento co-assinado com o procurador, um funcionário da Iracema reconheceu que no "talhão 35" o rendimento foi de 138 toneladas por hectare. Talhão é uma subdivisão, de dimensões diversas, da área do canavial.
Na terça, outro executivo da Iracema afirmou que estava errada a tabela da empresa. Por engano, computaram-se 138 toneladas, mas "a produção por hectare foi menor". Os trabalhadores teriam recebido corretamente.
 
Instrumento primitivo
Ao contrário do vendedor consciente dos sapatos que vendeu, o lavrador ignora as toneladas que colheu. Com a balança nas usinas, longe da roça, ele só sabe depois. Na lavoura, o terreno cortado é medido por um instrumento primitivo: um compasso de madeira, com pontas de ferro e raio de 2 metros. O fiscal caminha girando o compasso gigante.
"Enquanto as usinas utilizam modernos sistemas de monitoramento por GPS para projetar a colheita, os trabalhadores são remunerados no "olhômetro", acusa o Ministério Público do Trabalho.
Indagado sobre as toneladas que corta e o valor do metro, um canavieiro respondeu, em Pederneiras, como os colegas: "Não sei".
Nas greves de 1984 a 86, os cortadores reivindicaram sem sucesso o pagamento por metro, e não por peso. "O trabalhador sempre foi roubado", acusa José de Fátima Soares, líder das antigas mobilizações em Guariba. Zé de Fátima aderiu ao petismo e ao trotskismo e trocou-os pelo malufismo. Hoje é do PPS.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cosmópolis acionou o Ministério do Trabalho em 2005. Com base em anotações da performance em metros no canavial e da pesagem nas usinas, descortinaram-se diferenças entre cana colhida e pesada. Em 4 de agosto daquele ano, a empresa A.P. de Freitas Neto fixou a relação de 30 kg por metro. A cana se destinava à usina São José. Na balança, o metro pulou para 49 kg.
Em 1998, greve em Cosmópolis conquistou um sistema pioneiro para conferir a produção: na usina de Cosmópolis, a Ester, três funcionários do sindicato se revezam 24 horas na sala de operação da balança.
Eles monitoram, caminhão por caminhão, as toneladas que os computadores da empresa registram.
O controle da produção, com sindicalistas conferindo o peso, só existe lá. Nas grandes usinas, o método é o do caminhão-campeão. Selecionam-se três amostras do canavial, pesa-se e define-se o valor do metro. O cortador não testemunha a pesagem. Certas empresas nem esse recurso empregam.
"Por que, no Brasil, só uma usina faz o controle da produção?", pergunta Carlita da Costa, presidente do sindicato de Cosmópolis. "Para mim, há fraudes [em outras usinas]."
A União da Indústria de Cana-de-Açúcar afirma que há um esforço com a Federação dos Empregados Rurais Assalariados de SP para assegurar "transparência e confiabilidade" e "apurar se aquilo que se está produzindo se está recebendo". Patrões e empregados não sabem de punição criminal por manipulação de peso. A usina São José foi procurada, mas não se pronunciou. A Freitas Neto não foi encontrada.
O contador Fábio Urrea, contratador de mão-de-obra, disse em Agudos que, "se o cara for sério", é difícil fraudar o peso. "E existe quem não seja sério nesse meio?", ouviu dos repórteres. Urrea sorriu: "É duro falar. Complicado".
 

4 Recado(s). Após o sinal, deixe o seu!:

Dulce Miller

É difícil entender esse cálculo mesmo, com certeza alguém está ganhando muito. A única certeza é a desvalorização absurda de um trabalho tão pesado.

As drogas acabam sendo um recurso encontrado por essa gente pra aguentar o sofrimento desse trabalho - não justifica, mas é compreensível de certa forma.

Unknown

Eu pergunto: Como as drogas chegam até eles?

Plebe Rude e Ignara

A vida miserável dos canaviais ainda vai se tornar mais miserável com a mecanização avançando... e pior é a invasão da drogas...
ps: obrigado pelos coments no blogsblogs...


"post que os leitores virão"
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Max Coutinho

Oi Juca,

Quanto mais capítulos leio, mais fico chocada! Coitados dos trabalhadores: drogam-se e bebem para poderem aguentar a dureza do trabalho executado (dores físicas e etc) e depois são penalizados pelo vício.
E como se não bastasse ainda são aldrabados no salário: um horror!

Ainda há muito a ser feito no campo social: a luta ainda não acabou!

Muito bom, lindo!

Beijos :D

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