sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A realidade, em pleno século 21, dos trabalhadores brasileiros nos ricos canaviais do país (parte 5)

Este post foi dividido em seis partes porque a matéria aqui apresentada é extensa e densa. Esta série de reportagens, realizada pela Folha de São Paulo (apenas para assinantes), pretende mostrar a cruel realidade do dia-a-dia dos cortadores de cana-de-açúcar no país. É um verdadeiro 'soco no estômago' no comodismo da tal Justiça Social.
"A democratização das nossas sociedades se constrói a partir da democratização das informações, do conhecimento, das mídias, da formulação e debate dos caminhos e dos processos de mudança." (Betinho)
 
Parte 5: "Filhos não reconhecem os pais" e "Lida subjetiva"
 

O submundo da cana

Estado que detém 60% da produção nacional de cana-de-açúcar, São Paulo não divide a riqueza derivada do boom de etanol com seus 135 mil cortadores, que vivem muitas vezes em situações precárias
 
MÁRIO MAGALHÃES
JOEL SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS AO INTERIOR DE SP
 

Filhos não reconhecem os pais

Cerca de 40% dos trabalhadores na colheita de cana-de-açúcar em SP são migrantes provisórios
 
Houve um dia em que Raimundo Francisco foi contar a história da sua vida aos seis companheiros com quem divide uma casa no interior de São Paulo. Nenhum ficou até o fim. "Para não chorar", diz. Todos são do Maranhão. Seis vieram de Codó, um de Timbiras, municípios cujos índices sociais fazem dos bairros pobres de SP o melhor lugar do mundo.
Reginaldo trabalhava na roça própria. Fora da época da colheita, "o pior do dia era chegar em casa e não ter o que comer". No fim do ano, ele reencontrava os amigos que desde abril estavam para os lados do sul colhendo cana. Apareciam com "uma motinho, um som". "Eu queria ter também."
Como os outros maranhenses que se apertam em dois cômodos. O mais novo tem 22 anos. O mais velho, 46. São casados, com quatro filhos na média. Dois são alfabetizados.
Dizem ganhar de R$ 700 a R$ 900 mensais brutos, mantêm contratos de safristas com usinas -em novembro rumam para o Maranhão. Sustentam-se longe de suas terras, mandam ajuda e persistem no sonho de não retornar de mãos vazias. Falam dos filhos que não os reconhecem na volta. Dois garotos de Raimundo choraram e fugiram ao vê-lo.
A União da Indústria da Cana-de-Açúcar estima que pelo menos 54 mil cortadores de cana do Estado (40% da mão-de-obra) sejam migrantes provisórios. Deve haver mais, porque muitos já são inscritos com seus endereços paulistas. Milhares desembarcam em ônibus alugados por eles ou por "gatos", os intermediários da contratação para o corte.
Na leseira da folga semanal, os colegas inventariam estragos. Edizon cortou um dedo amolando o facão. Com dor na coluna, Manoel não comparece à lavoura há dois dias.
Pedem que não se diga em que cidade moram, mas permitem a gravação da entrevista. Sabem de quem arruma outra família, "local". E de conhecidos que voltaram oito meses depois e deram com a mulher recém-barriguda. As moças paulistas da vizinhança não estão nem aí para os cortadores. Amigos lastimam que, no prostíbulo, a rameira menos cotada cobre o equivalente a um dia e meio de salário do trabalhador.
 

Lida subjetiva

Para entidade que representa produtores, mídia tende a generalizar maus exemplos pontuais
 
EM SÃO PAULO
 
Na sala do décimo andar de um edifício da avenida Brigadeiro Faria Lima, onde o diretor técnico da União da Indústria da Cana-de-Açúcar concede entrevista em São Paulo, as paredes estampam seis fotografias emolduradas. Três mostram caminhões descarregando cana; duas focam outros ângulos de uma usina; e uma descortina o canavial imponente - sem vivalma à vista.
Esse mundo o administrador de empresas Antonio de Padua Rodrigues, 56, conhece bem. Aos oito anos, nas férias escolares, ele cortava cana no interior. "Falar que é fácil é mentira", reconhece. Uma tia morreu na mesma lida, picada por uma cobra cascavel.
Hoje o sobrinho dela, nascido em família modesta, é um fabuloso banco de dados cerebral, uma das duas vozes mais reconhecidas da entidade que reúne usinas de São Paulo - Estado produtor de 60% da cana do país -, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás e Espírito Santo. A outra face mais visível da Unica (pronuncia-se "única", proparoxítona) é a do seu presidente, Marcos Jank.
Do que morrem os canavieiros? O corte de cana "não mata", afirma Padua. "Pode-se morrer em qualquer situação, local e hora." Na sua opinião, "o serviço não leva à exaustão. Ninguém é obrigado a cortar cana ininterruptamente".
Movimentos como as flexões não causam problemas? Complicações com a coluna "também tem quem trabalha em escritório diante do computador", sustenta o executivo.
Mesmo assim, algumas companhias promovem ginástica laboral para os funcionários no campo, como comprovam imagens em publicações. Ao acompanhar turmas de empregados de usinas e fornecedores de cana, os repórteres não testemunharam lavradores se exercitando - a não ser com o facão.
A associação dos usineiros rejeita projeções sobre a vida útil dos cortadores. Nem sabe definir quanto tempo eles permanecem na atividade.
O pagamento por produção não incentiva o trabalhador a ultrapassar seus limites? "Não existe esse absurdo de que falam", diz Padua. Ele estima o piso salarial no Estado em uma faixa de R$ 480 a R$ 550. "O trabalho é difícil, penoso, mas não é desumano."
Segundo o Instituto de Economia Agrícola, em 2007 a remuneração média pelo corte em São Paulo foi de R$ 720. Nas contas da Unica, por volta de 95% do emprego local no cultivo da cana é formalizado.
A Unica contesta igualmente as autuações do Ministério do Trabalho por submissão, em canaviais, de trabalhadores a condição análoga à de escravo.
Há excessiva subjetividade na interpretação dos fatos, diz Padua. "Pagar abaixo do salário mínimo é trabalho escravo?", indaga. Propõe revisar a legislação para torná-la mais clara - o Código Penal prevê o crime referente ao trabalho escravo.
 
"Heróis" de Lula
Um problema do setor sucroalcooleiro, aponta Padua, é a terceirização da produção de cana. Protocolos definem o fim da prática para 2010 em São Paulo. Ela "traz desconforto", diz, porque as usinas "têm que responder [na Justiça] como se fosse trabalho próprio".
Na visão dos usineiros, pesquisas sobre o impacto nocivo do trabalho padecem de limitação severa: o universo pequeno dos indivíduos analisados. É o caso, exemplificam, de tese sobre o nível elevado de substâncias cancerígenas na urina de 41 cortadores durante a safra.
Outra crítica se dirige contra organizações civis e o jornalismo. Do ponto de vista da Unica, tomam-se como padrão alguns maus exemplos pontuais de gestão do trabalho. A agremiação e seus 117 associados (eram menos de 90 um ano atrás) mantêm 154 iniciativas de qualificação de mão-de-obra.
O segmento de cana, açúcar e álcool deve movimentar R$ 40 bilhões neste ano no Brasil, diz a Unica. O valor corresponde a pouco mais de 1,5% do PIB.
A Secretaria da Agricultura e Abastecimento avaliou que a cana-de-açúcar representou no ano passado 36% do valor da produção agropecuária de SP.
O Estado deve fechar o ano com 181 usinas, sete a mais que as já em funcionamento. No centro-sul, incluindo o Sudeste, de 80 a 90 devem começar a operar em três anos. No país, há em torno de 370.
A imagem dos usineiros, que já foram sinônimo de irresponsabilidade social e paradigma de beneficiários de benesses do Estado, vem mudando. Pelo menos para o presidente da República, natural de Pernambuco, área canavieira tradicional. Luiz Inácio Lula da Silva disse em março de 2007: "Os usineiros, que até seis anos atrás eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool".
Neste ano, Lula minimizou o trabalho degradante na roça: "Vira e mexe, estamos vendo eles [europeus] falarem do trabalho escravo no Brasil, sem lembrar que no desenvolvimento deles, à base do carvão, o trabalho era muito mais penoso que o trabalho na cana-de-açúcar".
Os usineiros são mesmo heróis? Padua cita o jogo duro do mercado mundial, as pressões ambientais e sociais. Sua síntese: os empresários "têm coragem de se expor. O setor não é de aventureiros".
Na despedida dos jornalistas, a Unica entregou publicações, algumas em inglês. Nelas cintilam fotos de usinas e de canaviais. Em nenhuma aparece um só trabalhador cortando cana.
 

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Dulce Miller

Os heróis de verdade são os trabalhadores que produzem para os usineiros... =/

Lula comparar o trabalho com o carvão como para minimizar a escravidão da cana?
Aff...

Unknown

"Dois garotos de Raimundo choraram e fugiram ao vê-lo."
É muita humilhação.

"a rameira menos cotada cobre o equivalente a um dia e meio de salário do trabalhador."

"Do que morrem os canavieiros? O corte de cana "não mata", afirma Padua. "Pode-se morrer em qualquer situação, local e hora." Na sua opinião, "o serviço não leva à exaustão. Ninguém é obrigado a cortar cana ininterruptamente".
Movimentos como as flexões não causam problemas? Complicações com a coluna "também tem quem trabalha em escritório diante do computador", sustenta o executivo"

Carla Beatriz

Que barbaridade! Passaram-se pouco mais de 100 anos da abolição da escravatura no Brasil e há trabalhadores que ainda trabalham em condições sub-humanas. :-(

Max Coutinho

Meu Deus....o Presidente Lula é algum idiota ou quê? Sim, a fortuna Europeia foi feita à base de trabalho penoso (praticamente escarvo, é verdade - a revolução industrial do século XVIII é disso prova), mas os Europeus aprenderam a sua lição (daí a criação dos Sindicatos, no século XIX) e esperavam que o mundo tivesse evoluído! Estamos no século XXI e ainda temos casos destes no mundo? É uma vergonha.

Presidente Lula, na Europa nós não temos este tipo de trabalhos forçados, é por isso que os sindicatos funcionam bem (embora às vezes atrapalhem); e aí? O sr. não pertencia a um? Não é da sua responsabilidade defender os seus camaradas? Estamos a ver que a sua campanha eleitoral era só garganta...política à moda antiga!

Juca, excelente artigo!

Beijos

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