Crédito: Lino Resende
Este texto faz parte da blogagem coletiva Dignidade e Justiça para todos nós, uma iniciativa de Sam Cyrous, do blog Fênix Ad Eternum. O artigo que apresento logo abaixo é muito pertinente ao tema da blogagem, mas requer um pouquinho de paciência e persistência na leitura!
Filosofia da Libertação e dignidade humana: um caminho para a justiça?
Autor: Cleber Affonso Angeluci (Advogado, Mestrando em Direito na Fundação Eurípides Soares da Rocha, Marília/SP)
Introdução
Ao longo dos séculos foram criadas várias teorias visando conceituar a justiça, não havendo consenso até nossos dias sobre o seu conceito e efetividade. Através da Filosofia da Libertação é possível, não responder definitivamente a questão, mas divisar um horizonte para a sua concretização.
A exclusão é grande fator de injustiças, conseqüentemente, uma teoria que pretenda a ruptura com a Totalidade, onde excluídos são considerados apenas como estatística, tende a ser eficaz. Esta é a finalidade da Filosofia da Libertação; romper com a ordem posta que desconsidera as pessoas excluídas, criando uma nova situação de inclusão.
Não é pretensão do presente estudo, entretanto, esgotar o assunto, nem mesmo conhecer profundamente esta Filosofia da Libertação, menos ainda, traçar um conceito de justiça. Pretende-se apenas contribuir para a discussão de novas idéias, utilizando para tanto, do princípio da dignidade da pessoa humana e da necessidade de sua aplicação prática como vetor para atingir o justo.
As idéias de Enrique Dussel caracterizam muito bem este anseio, por isso, a exposição de sua teoria será utilizada como norte para o desenvolvimento das linhas seguintes, especialmente por se tratar de autor latino que retrata pensamento próximo da nossa realidade.
1. Breve noção sobre a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel
Todo o caminho percorrido pela Filosofia da Libertação, esposada por Enrique Dussel, indica a necessidade de superação da ordem posta, para a instituição de uma nova situação onde seja possível a inclusão do pobre, do assalariado, da mulher submissa ao marido da sociedade machista, visando uma ruptura com o modelo conhecido, tido como eurocêntrico e a criação de uma nova realidade.
Para o aperfeiçoamento dessa ruptura, o OUTRO ou alter desempenha papel de relevância, pois a necessidade do estabelecimento dessa ‘libertação’ somente ocorrerá com a atribuição e reconhecimento da pessoa considerada enquanto e como PESSOA.
O argumento utilizado por Dussel é que todo o conhecimento e todo o sistema implantado, que nós, ‘representantes dos países do sul’, repetimos, nada mais é do que a visão e o estabelecimento de um sistema imposto, pelos estudiosos dos países pertencentes ao norte (o continente Europeu e Estados Unidos), tornando-nos meros repetidores dos conceitos e pensamentos próprios de quem não vive a realidade do alter, consubstanciada na nossa realidade, de pobres, latino-americanos, subdesenvolvidos.
Seguindo este raciocínio, Dussel estabelece como contra-ponto a Teoria da Justiça de John Rawls, criticando-a duramente por ter como partida a institucionalidade norte-americana. Com isso, Dussel é um ferrenho defensor da necessidade de ruptura do modelo filosófico ‘eurocêntrico’, argumentando que o estudo do homem e das culturas, especialmente da Modernidade, feito pelos cientistas do ‘Norte’, não serve para a realidade do OUTRO, representada pela grande massa da humanidade encontrada na América Latina, Ásia e África, onde estão os verdadeiramente pobres, excluídos e distantes de integrarem a TOTALIDADE, disposta pelos representantes do Norte.
O grito pela ‘Libertação’ significa estabelecer no mínimo, uma relação de diálogo com a ‘humanidade’, ou melhor, com os representantes da ‘humanidade’ da porção norte, entretanto, não há sinal de que o processo se aperfeiçoe, pois ausente a inclusão.
2. Direito e dignidade humana para a justiça
Nesse aspecto, caberia perguntar: o direito é um fator de inclusão social ou de exclusão social? Até onde o direito é capaz de estabelecer critérios de justiça sob a ótica da Filosofia da Libertação?
O direito posto, o sistema jurídico vigente em nosso país, como legítimo representante do ‘sul’, está sofrendo, há anos, um verdadeiro desgaste e grande descrença, tornando a ‘humanidade do sul’ sem perspectiva na consecução dos princípios basilares estabelecidos, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana.
A dignidade do Outro: do pobre do sistema capitalista, da mulher da sociedade machista, do filho da sociedade patriarcal, conforme o próprio Dussel afirma, daqueles que são considerados como TOTALIDADE, mas que fazem parte da periferia, que devem transcender sua condição para romper com o paradigma vigente.
Mas aqui há necessidade de um breve questionamento, ou melhor, de duas breves questões: o que se deve considerar como ‘dignidade da pessoa humana’? Como atribuir ao Outro essa dignidade? Levando em conta, especialmente, a condição humana de um ser diferenciado de todos os demais seres da natureza, porque é o único dotado de liberdade, inteligência e vontade, esta diferença nos faz “dignos” da condição humana. (SOUZA, 2002, p. 179)
Os valores da pessoa humana agregaram-se, historicamente, àquilo que se convencionou chamar de direito natural ou fundamental. Este é, evidentemente, um tema mais amplo, uma vez que, na concepção de alguns filósofos – como foi o caso de Locke – abrangia até mesmo a propriedade privada. (POZZOLI, 2001, p. 105)
Por outro lado, partindo do ponto específico das críticas que Dussel tece a Rawls e aos filósofos do ‘Norte’ que soam mais como indicação de obstáculos que eles enfrentam, e que o próprio Dussel sugere, em virtude de sua condição, ‘de filósofos do Norte’ de quem não tem contato com as mazelas e as injustiças dos latino-americanos, ou ainda, dos excluídos e oprimidos, para abrigar também os demais ocupantes da ‘humanidade do sul’: africanos e asiáticos.
Pois, mesmo estando na condição de periferia e desconsiderando as diferenças naturais que ele refuta, como seria possível, senão por meio de abstração, estabelecer um contato íntimo com o alter, saber efetivamente o que, como e onde essa ‘dignidade’, para ele OUTRO será relevante, ou seja, a vagueza das necessidades de cada um, considerado como OUTRO, da sua própria condição, pressuporia o ingresso em seu ser para responder a estas indagações.
Por outro lado, se estabelecer uma abstração tal, em que se considere a dignidade, como o mínimo de condições de vida, de satisfação, de direitos e até mesmo de realizações, estar-se-ia permanecendo em uma abstração compartimentada, impondo-se dessa forma, não a visão de uma nova TOTALIDADE, mas apenas de uma ‘libertação’ desejada por quem a defende e não conseqüentemente, da humanidade do ‘sul’ excluída, daquela TOTALIDADE inicial.
Ou melhor, as críticas direcionadas aos cientistas do norte têm muito mais amparo nos obstáculos epistemológicos de sua posição inicial (também não inteiramente rompida por Dussel), do que para os critérios estabelecidos pela teoria de cada um, portanto, o próprio Dussel, ao defender a Libertação da América Latina e dos demais ocupantes da periferia, o faz na condição de latino-americano, portanto, partidário e que não se viu capaz de romper com sua condição inicial, nesse aspecto, sua teoria encontra marcada por esta situação pessoal.
Cabe ainda a dúvida quanto à questão da extensão do princípio constitucional da ‘dignidade humana’, pois se trata de um lugar não pacífico e até mesmo desconhecido, podendo deduzir que tal discurso legal de índole constitucional, socioideologicamente construído, ao deixar em aberto os traços do que deva ser entendido como “dignidade da pessoa humana”, leva-nos a um sentido de ambigüidade e vagueza da expressão (LOWENTHAL, 2001, p. 333). Porém, levando em conta a situação exposta, onde se estabeleça critério de dignidade para um certo número de pessoas, de uma certa localidade, poderia pontuar contornos a essa dignidade, enfim, condições de ‘libertação’ do excluído, que não atingiria a Totalidade, tornando ineficiente o princípio, especialmente pela ausência de proteção das pessoas que não possuem condições de dignidade.
Especialmente porque a dignidade de determinadas pessoas (OUTRO), é por eles desconhecida, tendo em vista que não dispõem do mínimo de condições necessárias para esse fim, sequer se reconhecem pessoas, menos ainda dignas.
Dessa forma, a tomada de consciência da efetividade do direito e da verdadeira realização da justiça, segue antes, o caminho da consciência do OUTRO, considerado em sua individualidade e como pessoa humana, com dignidade e não apenas valor (KANT, 1986, p. 77), entretanto, há necessidade de um encontro entre o Outro e ele mesmo, que ocupa paradoxalmente a posição na TOTALIDADE como EXCLUÍDO, para assim proceder à libertação, considerada como ato ou procedimento prático graças ao qual o não-livre passa a ser um sujeito atuante da liberdade.(DUSSEL, 1995, p. 111)
Dussel considera ainda, que
são exatamente situações-limites que interessam à Filosofia da Libertação (as guerras, as revoluções, os processos de libertação das mulheres, das raças oprimidas, das culturas populares, bem como dessas maiorias que se encontram em situações de não-direito, dessa Periferia ou mundo colonial que, por definição, se acha subjugado por uma estrutura de opressão etc.). O princípio ‘Liberte hic et nunc o oprimido!’, ou: ‘Faça com que o atingido/excluído também participe! exige a realização de um procedimento, mas não uma ‘aplicação’ propriamente dita do transcendental ao empírico. (DUSSEL, 1995, p. 117)
Esta conquista do Outro e para o Outro talvez possa responder a todos os questionamentos feitos ao longo desse estudo, servindo assim, o direito para a inclusão social e para a conquista da justiça.
Para tanto, a ‘perfectio’ do homem, ao chegar a ser o que pode ser em seu ser livre para as suas mais autênticas possibilidades (na projeção), é uma obra da preocupação. (DUSSEL, p. 40). O outro deve ser entendido como Outro e não apenas como outro, conforme o próprio Dussel esclarece, considerado em sua individualidade, definido a partir de sua própria realização.
Dessa forma, a afirmação da Totalidade em si mesma é na verdade negação do Outro injustamente abolido; o não do escravo à dominação é afirmação de si como o Outro. Por outro lado, a Alteridade é necessariamente rebelião, não dos que dominam na degradada dialética do ‘se-isso’, mas dos dominados que sofrem a opressão.(...) É por isso que ‘felizmente logo aprendi a não buscar a origem do mal além do mundo’, o mal é interior à Totalidade. (DUSSEL, p. 41/42)
São questões formuladas por Dussel: Quem é bom? Qual é o homem perfeito? Ou seja, o homem perfeito, plenamente realizado em seu poder-ser, é a medida que mede todo o projeto humano ontológico. (DUSSEL, p. 43)
Finalmente conclui que o homem perfeito será aquele que por sua bondade, sua plenitude antropológica, pode abrir-se ao Outro gratuitamente como outro, não por motivos fundados em seu próprio projeto de Totalidade, mas por um amor que ama primeiro alternativamente: o amor-de-justiça. (DUSSEL, p. 43)
Para a Filosofia da Libertação o que importa é o ser do Outro, daquele que está fora da Totalidade, fora do sistema, como pobre; havendo pois, a necessidade do amor, um amor gratuito, um amor criador, amor este que vai além do horizonte ontológico; ser ateu na Totalidade é a condição negativa para poder amar o Outro como outro com amor-de-justiça, que nada tem a ver com a compaixão schopenhaueriana que não é mais do que um egoísmo do nós, um egoísmo compartilhado na Totalidade. (DUSSEL, p. 137)
3. Para concluir
Dessa forma, a Filosofia da Libertação pretende uma justiça que leve em consideração o Outro e não apenas o outro, sua condição de oprimido, sua condição de fora do sistema, baseado na Alteridade.
Para essa consideração há necessidade de que ao outro, como ocupante da Periferia, seja levado o conhecimento e a consciência da necessidade de romper com aquela ordem da Totalidade, para assim estabelecer o ‘grito’ de ‘libertação’, através da interpelação do ocupante da Totalidade, que considera o outro apenas como valor estatístico, desconsiderando sua condição humana, seu direito àquela dignidade referida.
O conhecimento e a amplitude da dignidade humana, pelo OUTRO, como valor fundamental para o estabelecimento da Justiça, pois somente com dignidade e inclusão se poderá falar em distribuição da Justiça.
Não que a Filosofia da Libertação e o Direito, possam estabelecer definitivamente um conceito de justiça, pois como o próprio Kelsen afirmou, é grande a dificuldade de conceituá-la, com o fracasso de muitos estudiosos que pretenderam conceituá-la (KELSEN, 2001, p. 25). Entretanto, o caminho para este fim, certamente é o diálogo e a realização prática dos princípios e garantias estabelecidos legalmente, como o princípio da dignidade da pessoa humana.
Com esta vontade, dispensando ao Outro o amor que se tem por si, a justiça possa ser alcançada, ou quem sabe seja a justiça um sonho distante do homem...
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Fonte: Revista Espaço Acadêmico
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Oi, Juca, estou abrindo os comentários :-). Olha , bela participação a sua com este artigo. E acho que a frase final diz tudo. E nem precisa ser dispensado ao outro o mesmo amor que se tem por si. Dez por cento já serviria.
abraço
Participação mais que perfeita Juca.
"Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade." assim diz o artigo 1º da Declaração Universal do direitos Humanos!
Beijos meu lindo!
Amigos e Amigas
Se há uma coisa em que acredito é na pressão da opinião pública. Os governos, embora não pareça, já lhe vão atribuindo alguma importância. Os Movimentos de Cidadãos neste formato, a nível global, são relativamente recentes, mas já vão produzindo o seu efeito, editamos aqui muita bobagem porque isto é também um divertimento, mas somos da mesma forma capazes de fazer desta ferramenta uma arma apontada à indiferença. Cada blog tem os seus níveis de leitura e quantos mais conseguirmos trazer mais exponencial será o resultado final. O Sam que vive aqui em Portugal, conseguiu por o Brasil a liderar esta blogagem colectiva, seria interessante chegar mais longe e que a próxima atingisse todo o universo da Lusofonia, os CPLP, a Francofonia etc., etc. Resumindo, é preciso acreditar, amigos!
Um fraterno abraço a Todos e a Todas.
Nota: Este comentário foi enviado a todos os participantes, pela impossibilidade de fazer um específico a cada um de vocês.
Juca, que texto interessantíssimo, e seria completamente infame eu falar alguma coisa.
Um texto completo e verdadeiro.
Somos todos iguais em direitos, mas temos que lutar muito para fazer essa diferença e fazer tudo isso valer a pena. São poucos que seguem...
Beijos, meu anjo!!
ótimo post, muito bom.
Tenha uma bela tarde.
Maurizio
Olá Juca,
Excelente post.
Também participei da blogagem coletina porém hoje é que estou navengado com calma pelos blogs que participaram.
Quero também lhe convidar para participar da blogagem Consumo Consciente promovido pela Sam Shiraishi que acontecerá do dia 15 ao 20 de dezembro.
Venha pegar seu selo (http://www.samshiraishi.com/consumo-consciente/) e junte-se a nós. Vamos fazer do nosso Natal, um Natal Sustentável.
Aguardo por você.
Abraços e ótimo final de semana!
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Juca (o gerente)