Arte & Cultura: 03/01/2007
AO ARQUEÓLOGO DO FUTURO
Quando a infelicidade era sagrada
Como foi possível que o chamado de homens como Moisés, Jesus de Nazareth, Mahomé e Buda transformou-se nestes movimentos humanos muito complicados chamados religiões, que se foram espalhando pelo planeta pouco a pouco, até serem religiões globais, mundiais?
Otto Maduro
Querid@ arqueólog@ do futuro:
Nasci na Venezuela, na América do Sul, em 1945. Morei lá durante a maior parte dos meus primeiros 25 anos. Depois, passei quase seis anos na Europa Ocidental, voltei para a Venezuela por uns cinco anos e, depois, voltando a cada ano para a minha terra natal, passei boa parte do resto da minha vida nos Estados Unidos, que neste meu tempo é a nação econômica e militar mais poderosa e destrutiva do planeta.
Uma das coisas que mais me ocuparam e preocuparam enquanto vivi – não sei se as pessoas do futuro compreenderão isto – é algo que muita gente ainda chama de religião. Mais particularmente, estive ocupado e preocupado em entender como foi possível que o chamado de amor, paz, justiça e solidariedade que fizeram várias pessoas nas terras do denominado “Oriente” há vários milênios (estou falando de uns indivíduos dos quais é possível que se tenha perdido toda a lembrança no futuro: Moisés, Jesus de Nazareth, Mahomé e Buda) tenha se transformado nestes movimentos humanos muito complicados chamados religiões, que se foram espalhando pelo planeta pouco a pouco, até serem religiões globais, mundiais. Estive preocupado e ocupado em investigar como essas religiões, em pouco tempo, terminaram interpretando o chamado dos seus “fundadores” de maneiras extraordinariamente variadas: tão variadas que, a cada século (talvez a cada ano, e inclusive pode ser que a cada dia), desde que começou uma ou outra dessas religiões – chamadas “judaísmo”, “cristianismo”, “Islã” e “budismo”–, houve matanças de seguidores de cada uma delas, não só por participantes de outras religiões, ou sequer exclusivamente por inimigos de todas as religiões, mas por outras pessoas também seguidoras da mesmíssima religião.
Confesso que talvez as coisas fossem mais fáceis para vocês entenderem, no futuro, (e para mim, neste começo do século XXI) se essa fosse uma característica de todas as religiões o tempo todo e se fosse típico somente das religiões. Mas não é assim que ocorre nos tempos e lugares nos quais vivi. Por um lado, também é nas religiões que se pode encontrar muitas das pessoas, comunidades e iniciativas mais generosas, altruístas, bondosas e solidárias – gente que tenta viver profundamente o chamado de amor, paz, justiça e solidaridade dos “fundadores” das suas religiões; pessoas que desdenham a obsessão dos nossos tempos com a riqueza, as posses materiais, a fama, o poder e a segurança, e que preferem os caminhos da simplicidade, da frugalidade, da humildade, da igualdade e da vulnerabilidade.
Parece um paradoxo, não é verdade? Não sei se isso será compreensível no futuro. De qualquer maneira, a coisa é ainda mais complicada. Neste nosso tempo, também há muitíssima gente que não acredita nem segue nenhuma religião. Muitas dessas pessoas só vêem aquilo que as religiões têm de ruim. E algumas dessas pessoas não religiosas (provavelmente milhões) compartilham, também, um chamado de amor, paz, justiça e solidaridade, só que definem esse chamado como puramente humano, histórico ou social, não como religioso. Lamentavelmente, entre estas últimas pessoas, ao mesmo tempo que existem aquelas que vivem uma vida de simplicidade, frugalidade, humildade e vulnerabilidade, também há perseguições recíprocas, interpretações contraditórias das mesmas idéias e até barbaridades cometidas pela obsessão com a riqueza, as posses materiais, a fama, o poder e a segurança. Mas, da mesma maneira, como nas religiões, aqui também existem pessoas, comunidades e iniciativas tão generosas, altruístas, bondosas e solidárias como algumas das que podem ser encontradas em todas e cada uma das religiões que são conhecidas na minha época e região.
Curioso, não? Ou talvez acontece algo parecido entre vocês, nossos congêneres do futuro e, nesse caso, tudo isto pode não parececer tão insólito assim.
Talvez vocês, nossos semelhantes do futuro, estejam perguntando-se enquanto lêem isto e outros restos arqueológicos, o que seria isso que nossos antepassados chamavam religião. A pergunta, apesar de que supostamente sou um “especialista” na matéria, é uma que ainda me faço diariamente, após anos, estudando-a. Hoje em dia, acho impossível definir religião de um modo aceitável e compreensível para qualquer pessoa da minha época e da minha língua. Para qualquer definição ou explicação que possamos tentar, sempre haverá gente que, ao mesmo tempo em que se autoqualifica como religiosa, recusará essa explicação ou definição do que é religião como contrária à sua própria experiência. Ou seja, tudo o que eu posso fazer para ajudar você, arqueólog@ do futuro, a entender algo dos meus tempos e lugares, é dar outra explicação possível sobre o que nós entendíamos por religião.
Pode-se dizer que, ao que parece, tendemos a chamar religião a qualquer mistura variável de idéias, rituais, grupos, objetos, lugares e tempos através dos quais se tenta definir e defender a vida de alguns seres humanos (seus corpos, famílias, costumes, posses, idéias, cultura, linguagem, etc.) como sagrada – ou seja, como digna de respeito, não uma realidade que não deve ser invadida, violada, maldita ou aniquilada, mas que também não deve ser descuidada, desatendida ou abandonada. E se as religiões chegam a se organizar, a se institucionalizar, se elas estabelecem alianças com os poderosos, e, inclusive, às vezes, chegam a tomar as armas, é justamente porque para defender como sagrada a vida de alguns seres humanos nem sempre bastam somente boas intenções, rituais e orações.
Algumas religiões chegaram inclusive a afirmar explicitamente que a vida de todas as pessoas humanas é sagrada, respeitável, inviolável. Por desgraça, entre as palavras e os fatos há muita distância, e o mesmo que acontece com outro tipo de movimentos também acontece com as religiões, ou seja, é muito o que se diz e muito pouco o que se faz: todas as religiões, mesmo que digam exatamente o contrário, tendem a identificar-se com uma pequena parcela da humanidade (certas classes sociais, nações, ou grupos étnicos; e, às vezes, só com quem, dentro desses grupos, seja seguidor da mesma religião). Por isso, a maior parte das religiões, na maior parte do tempo, de fato, somente defende como sagrada a vida de uma parte da humanidade – do resto da humanidade, ou não se preocupam minimamente, ou acham que são “pessoas de segunda”, pessoas cujas vidas são desprezíveis, prescindíveis, descartáveis. E a mesma coisa acontece com as organizações, movimentos e ideologias não religiosas, ou anti-religiosas.
Nestes meus tempos, em diversos lugares, anualmente morrem milhões de meninas e meninos devido à falta de água, comida, ou atenção médica. Ao mesmo tempo, gasta-se uma quantidade gigantesca de recursos materiais, tempo e esforços em coisas como armas e drogas, que não só não são necessárias à vida, como também a destroem.
Algumas religiões, de tanto predicarem resignação para aqueles que levam uma vida de trabalho e dor constantes, de tanto reinterpretarem a mensagem de amor, paz, justiça e solidariedade dos seus fundadores, e de tanto temerem as conseqüências de uma vida mais simples e igualitária para todos, terminam, muitas vezes, por fazer da infelicidade uma coisa sagrada: repudiando todo prazer mundano, por mais inocente que seja; condenando qualquer esforço para tornar mais grata e fácil a vida terrena de mais seres humanos; maldizendo aqueles que resistem diante dos abusos dos mais poderosos; tornando-se cegos, surdos e mudos diante do sofrimento injusto de tanta gente em mãos dos que têm armas, dinheiro, influência, fama, escolaridade e/ou títulos de reconhecimento. E uma coisa parecida ocorreu com muitos governos, partidos e movimentos – religiosos, não religiosos ou anti-religiosos – que chegaram a ter grande influência porque nasceram lutando por igualdade, justiça e paz para toda a humanidade, mas que reinterpretaram esse legado de várias e paradoxais maneiras.
Queridos congêneres do futuro: eu e algumas pessoas pensamos que nossos tempos – apesar de tanta invenção, tecnologia e idéias que poderiam ter servido para tornar a vida humana mais harmoniosa e prazerosa para todos – foram tempos nos quais, com excessiva freqüência, a infelicidade foi transformada em coisa sagrada, dentro e fora das chamadas religiões.
Torço para que os tempos em que vocês estão vivendo ao encontrar estas "pegadas" que deixamos sejam tais que vocês achem impossível, incrível, insólito que tenha existido uma época e umas culturas em que as coisas eram assim.
Amén.
Otto Maduro é professor de Cristianismo Global na Drew University Theological School Madison, E.U.A.
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
Fonte: Agência Carta Maior
http://cartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13152
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