sábado, 13 de janeiro de 2007

Crônica de Viagem: Em busca de Pachamama

CRÔNICA DE VIAGEM

Em busca de Pachamama

Depois de muita preparação e dúvidas, enfim saímos do Rio de Janeiro em direção aos Andes peruanos e bolivianos. Nossa viagem é, em boa medida, essa busca de Pachamama, do que ocorre de novo sob o sol e as chuvas das Américas.

RIO, SÃO PAULO E MINAS (2 de janeiro de 2007) - Depois de muita preparação e dúvidas, enfim saímos do Rio de Janeiro em direção aos Andes peruanos e bolivianos. Somos sete pessoas, entre cineastas, técnicos e pesquisadores. Estamos em dois Land Rovers – um 90 e outro 110, com os quais percorreremos 14 mil quilometros em cinco semanas. Nosso objetivo: entender o que se passa na América Andina hoje. Depois de encontros com Evo Morales, com vários dirigentes do MAS (Movimiento al Socialismo) e líderes nacionalistas peruanos, achamos que é o momento de ouvir o que a gente comum – todos aqueles que sempre consideramos sem voz na história. Tal como na canção de Mercedes Soza é a hora de ouvir “todas as voces todas”. Esta é a primeira narrativa de nossa viagem.

A partida
Após inúmeras revisões de equipamento e de procedimentos, todas invariavelmente pilotadas com eficiência alemã e meticulosidade chinesa por João Carlos Nogueira, um de nossos pilotos e um apaixonado pela unidade sul-americana, partimos do Rio de Janeiro às 6h30 da manhã de 2 de janeiro, ainda sob efeito das comemorações do Ano Novo. Ano Novo? Sem dúvida... Ano Bom? Bem, isso é mais complicado... Todos estávamos sob impacto, mesmo que silencioso, dos ataques terroristas sofridos pela população do Rio de Janeiro naquela semana. A passagem pelos subúrbios do Rio seria pontilhada por esta apreensão, como se fosse uma cidade sitiada. Rio/Beyruth. Rio/Bagdad. Talvez exagero, efeito da terrível cena de pessoas carbonizadas no interior de ônibus interurbanos, talvez apenas a sensação pegajosa de insegurança... Contudo, passamos bem pelos bairros para além da “zona verde” – as linhas coloriadas (Vermelha, Amarela, front da luta entre policiais e narcotraficantes e entre os próprios narcotraficantes. Dirigimo-nos para Campinas – estradas melhores! – onde devíamos encontrar Nelson de Almeida Filho, piloto profissional, amante de carros e de rallys, um veterano do camel Trophy e garantia da escolhas da melhores estradas.

A paisagem de sempre entre Rio e São Paulo. Restos da campanha eleitoral, Lula 13, ou Alckmin. Aqui e ali, nomes desconhecidos de políticos locais. Por toda a parte as igrejas, pequenas ou grandes, das novas confissões evangélicas – todas com grandes apelos messiânicos em suas fachadas. Nos rádios, ainda de madrugada, acompanhando a massa de peões na ida para o trabalho, a pregação apocalítica. O motivo principal: a violência no Rio de Janeiro. Sinal dos tempos, castigo divino. O Crente, contudo, seria salvo. As vítimas, incluindo aí aquelas tocadas por balas perdidas e os ônibus incendiados, seriam culpadas por sua própria morte, violenta e cruel. Tinham eles aceitado Jesus? E mais do que isso, pagavam os dízimos? Dízimos, diz o evangelista, são primícias e as primícias pertencem a Deus...

Visitando um outro Brasil
Outra rádio... Música assumidamente caipira. “Nossa ouvinte pediu Amado Batista... Lamentamos muito, mas não tocamos Amado Batista. Aqui só música sertaneja”. E tome música sertaneja. Depois de algumas centenas de quilômetros, já no interior de São Paulo rico, começamos a ficar preocupados: todos na Defender 110 estavam gostando!

Aos poucos, ao longo das estradas, o arruamento desordenado, as invasões e os casebres de arquitetura caótica das grandes periferias urbanas cedem espaço para sempre iguais bosques de eucaliptus: um outro significado para “natureza morta”. Nada de pássaros, nada de insetos, sequer um zumbido ou um canto... Apenas as mesmas árvores sujas, enfeites verdes de consciências práticas...

Depois são os campos ricos de Piracicaba, Pirassununga e Ribeirão Preto: imensos canaviais, ondas verdes pontilhadas de suas usinas. É a marca da prosperidade da economia de energia, do sucesso dos biocombustíveis alternativos... Por toda parte surgem sinais da prosperidade do complexo industrial sucro-alcoleiro. Monotonia da prosperidade, distanciamento da natureza.

Mariátegui no Sertão Mineiro
E então a grande arrancada: dos arrabaldes de Sertãozinho até Uberlândia, atravessando o coração verde e férreo de Minas Gerais. Na longa estirada um primeiro debate, o sinal foi dado por Daniel Chaves, ao apresentar algumas idéias de Mariátegui sobre socialismo e questão indígena nas Américas. Eryk Rocha, rápido e arguto, recolocada a questão camponesa como centro da questão indígena, da mesma forma que ela foi colocada pela aquela primeira geração de intelectuais preocupados com a transformação social, com a superação da pobreza e com a injustiça social. Contudo, as respostas da geração dos anos 30 do século passado haviam sido apenas uma cópia pálida dos debates intelectuais europeus. Uma tentativa tão etnocêntrica (e Imperialista?) quanto dos colonialistas em entender este imenso continente. Essa seria a posição de Mariátegui? Ele conseguiria escapar ao seu tempo e propor um caminho – um Sendero? – novo, e mais luminoso, para além da vulgata do marxismo ocidental, condenado a esclerosar-se no frio siberiano?

Discutimos, então, a mimese camponesa: essa incrível capacidade de homens e mulheres camponeses sobreviverem aos infortúnios e exploração do Mundo Antigo, como as formas componeses que sustentaram, por exemplo, a grandeza do Egito faraônico, muito além das próprias pirâmides. E mais além: sobreviveram aos seus exploradores medievais, aos senhores feudais e a burguesia exploradora para chegar ao amplo e cruel processo de expropriação durante a chamada “acumulação primitiva de capital”, descrita por Marx no tomo 1 d’O Capital... Segundo os primeiros textos de Marx, impiedosamente, os camponeses deveriam sucumbir ao capitalismo. Sob a lógica férrea do capitalismo, deveriam estar extintos, proletarizados numa ponta do processo de diferenciação social e transformados em kulaks, em outra ponta deste mesmo processo de diferenciação social do mundo rural...

Em busca de Madre-Tierra
Mas isso não se deu... Esta classe “equivocada” não aceitou cumprir seu papel designada na história. Mantiveram-se firmes e ergueram suas vozes. Suas revoluções, seus “furores” no dizer de Mousnier, sustentaram as Revoltas Inglesa de 1640 e Francesa de 1789. E então veio o socialismo. Enfim deveriam deixar a história, transformando-se em “homens socialistas”, curados de sua fixação na terra, nos seus animais e nos seus afazeres. Mas, ainda uma vez, isso não aconteceu na história. Renitentes, os camponeses sobreviveram ao próprio socialismo de Estado...

A teoria falhou: liberais e marxistas, profetas dos ‘fim do mundo’ camponês, testemunharam a falência de suas análises. Assim, o que ocorre nos Andes hoje – mas também em Chiapas e nos acampamentos do MST – não pode mais ser compreendido à luz das teorias, e contra-teorias, do século XX (e, segura, muito menos do século XIX).

Desta forma, a fala pausada, até mesmo doce, de Evo Morales, falando do socialismo – “nada sei, nada devemos, nada copiamos de Marx, Engels ou Lênin. Socialismo é o que aprendi com minha avó e aminha mãe. É a relação das gentes com a Madre-Tierra, com Pachamama”. Assim, herança coletiva dos povos indígenas das Américas abre uma nova e ampla avenida interpretativa. Para Evo, as respostas não estão com Marx, e sim com a Madre-Tierra, a velha deusa andina Pachamama.

Nossa viagem é, em boa medida, essa busca de Pachamama, a busca do que ocorre de novo sob o sol e as chuvas das Américas.


* Francisco Carlos Teixeira, colunista da Carta Maior, é professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro.



Fotos: Andes boliviano/Bia Barbosa

Fonte: Agência Carta Maior (Internacional)

Link para a matéria:

http://cartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13288

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