quinta-feira, 8 de setembro de 2005

Ensaio: Culto da Ignorância!

O mito do homem simples
Por Jean Marcel Carvalho França
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Atuação de Lula na Presidência causa danos enormes à crença brasileira na sabedoria natural
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É conhecida a tese de Machado de Assis segundo a qual, para sobrevivermos com o mínimo de sanidade mental e sem pensar semanalmente em suicídio, temos de abrir "janelas da consciência", de criar antídotos para amenizar as culpas decorrentes dos modos nem sempre dignos com que respondemos aos impasses do cotidiano. E não se trata somente de um mecanismo individual, inventado para tornar palatáveis as pequenas misérias de cada um. Ao contrário, povos inteiros utilizam desse eficiente estratagema.
O Brasil, por exemplo, inventou um curioso meio de lidar com um dos aspectos da "ruindade" -como dizia Darcy Ribeiro- que caracteriza o país: a exclusão socioeconômica e cultural. Por um lado, cultivamos um discreto mas profundo preconceito pelas pessoas cultas, preconceito ancorado na suposição de que, num país tão desigual, o conhecimento necessariamente traz consigo a mácula da exploração, da malícia e do esnobismo. Por outro lado, desenvolvemos uma espécie de culto do "homem simples", como se o pouco acesso e, por vezes, o desprezo pelo conhecimento trouxessem consigo, como compensação, a visão de uma verdade essencial e, sobretudo, um senso natural de justiça -tão necessário num país onde reina a injustiça.
Há quem enxergue nessa "janela da consciência" que criamos uma espécie de atualização do mito do "bom selvagem". Uma atualização daquele "homem sem lei nem rei, mas feliz" e moralmente superior ao civilizado que Montaigne celebrizou num renomado capítulo dos seus "Ensaios", denominado "Dos canibais". Há, ao contrário, quem, em se tratando de encontrar antepassados remotos, pense ser mais coerente e, porque não dizer, lusitano, recorrer à singela perspectiva que os padres da Companhia de Jesus elaboraram dos nativos. Destarte, segundo os que advogam tal procedência, o culto do "homem simples" viria de uma releitura daquela visão dos inacianos segundo a qual os nativos não pecavam contra Deus porque eram ignorantes demais e nem sequer chegavam a conhecê-lo.
Vieira, no seu "Chave dos profetas", escrito no final da vida, conta uma história ilustrativa a esse respeito. Diz-nos o padre que havia, no Colégio da Bahia, um esperto "negrinho", de nome Bernardo. Certo dia, interrogado por Vieira acerca da provável ida de seus antepassados para o inferno, em razão do desconhecimento que tinham das leis de Deus, Bernardo, sem hesitação disparou: "Os meus avós e os meus antepassados não estão no inferno. Porque, se eles não conheceram a Deus, como podia Deus mandá-los para o inferno?".
Impressionado com a resposta, o inaciano, às voltas com a busca de uma explicação do porquê o deus cristão e suas leis não penetravam a contento na mente daqueles homens do Novo Mundo, concluiu: "Fiquei quase estupefato ao ouvir o nosso Bernardo a filosofar com tanta clareza sobre uma questão tão obscura e, com essa conversa, fui informado por uma criança, ainda não adulta e pouco antes gentia, de que era como que conhecida pela luz natural da razão aquela conclusão sobre a qual os mais doutos dos nossos teólogos se digladiam entre si".
Todavia, tal linha de tradição, remontando aos dedicados membros da Companhia de Jesus, está longe de ser consensual. Muitos advogam, e com sólidos argumentos, que o culto ao "homem simples" a que somos inclinados nasceu mesmo durante o dito período romântico das belas-letras nacionais, período fértil, em que construímos, simultaneamente, um povo e uma cultura que passaram a se auto intitular brasileiros. É verdade que patriotas como Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Araújo Porto-Alegre, José de Alencar e tantos outros promoveram, bem ao gosto do tempo, mas também bem ao seu modo, um culto do "bom selvagem". Entretanto, é verdade também que tal culto estava impregnado de um afã civilizatório demasiado iluminista para permitir a construção de um "homem simples" com os contornos que este acabou por adquirir na cultura local. Ignorância e maldade, convém não esquecer, sempre estiveram muito próximos no universo literário do Oitocentos brasileiro.
É a ignorância que leva o avô de Aurélia Camargo, do romance "Senhora", a discriminar a sua neta; é a ignorância, também, que destrói o caráter do jovem Amâncio, o filho de fazendeiros rústicos de "Casa de Pensão"; é ainda, em alguma medida, a ignorância que leva o "moleque" escravo da peça "O demônio familiar", de José de Alencar, a cometer um sem número de maldades. Os exemplos são inúmeros, todos mais ou menos girando em torno do mesmo princípio: a falta de esclarecimento é um dos pilares do desvio moral; conhecer civiliza, no sentido mais amplo.
Tamanho impasse tem levado muitos a suspeitar de que o culto do "homem simples" talvez não passe de um episódio de "curta duração", com somente umas três ou quatro décadas de existência, carente, pois, das origens remotas que lhe querem atribuir. Trata-se, asseguram estes partidários da contemporaneidade do culto, de um fenômeno recente, produto de uma extremamente bem sucedida mistura entre uma certa interpretação da Bíblia e uma certa leitura de pensadores ditos "de esquerda".
Da junção dessas duas forças com profunda afinidade teria resultado, prosseguem os defensores da tese, umas "normas de conduta" (um peculiar culto do popular, um nativismo exagerado e barulhento, o desprezo ressentido pela erudição etc.) que acabaram por criar o caldo adequado para que pudéssemos abrir, quando afrontados pelo crônico e aparentemente insolúvel problema brasileiro da exclusão cultural, tão eficiente "janela da consciência".
É sempre complicadíssimo optar por uma ou outra "genealogia" do culto. Há virtudes e problemas em todas as "tendências", ainda que a última versão venha ganhando, a cada dia, mais força. Certo é, porém, que, independentemente de sua origem, muito da ojeriza que temos à ascensão pelo "mérito", do gosto que cultivamos pelo "assistencialismo" e do verdadeiro horror que nutrimos pela avaliação vêm da crença no "homem simples". Certo é, igualmente, que a atuação de Luís Inácio Lula da Silva no cargo de presidente da República tem causado danos enormes ao culto. Irônica e cruel é a história. O mesmo indivíduo que para alguns era a própria encarnação do "homem simples" e de sua sabedoria e justiça naturais talvez acabe por ser um dos grandes responsáveis pela sua morte.
Ao menos aí, pela negativa, a passagem pelo poder do outrora altivo líder do Partido dos Trabalhadores dará um contributo positivo à cultura brasileira, um contributo do mesmo gênero que deu Collor de Melo, cuja desastrosa governação colaborou enormemente para desgastar um outro "mito", outrora muito popular no país, o do "bem nascido iluminado".
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Fonte: Trópico

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Roberto Iza Valdés
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